Liga Acadêmica Interdisciplinar de Neurociências UFF
Esclarecimento sobre os tratamentos farmacológicos contra o
COVID-19
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Considerando a literatura científica até a presente data (22/05/20), não há evidência científica de qualquer medicamento capaz de diminuir a chance de contágio ou de atenuar a gravidade do quadro da COVID-19 em humanos. A melhor evidência até agora - e também controversa - é quanto ao remdesivir, um antiviral injetável, desenvolvido contra outros vírus, já há algum tempo. Sendo propositadamente redundante: até a presente data, não há evidência científica de que qualquer medicamento - e isso inclui a hidroxicloroquina, a cloroquina, a ivermectina, a azitromicina, a nitaxozanida (e outras) -, combinadas ou não, seja capaz de proteger contra o SARS-CoV-2 ou de tratar a COVID-19¹. Além disso, já há evidências de que algumas dessas drogas podem trazer efeitos colaterais, inclusive graves.
Alguns artigos científicos sugeriram que a hidroxicloroquina teve efeito contra o COVID-19 e um grupo francês, entre poucos outros, ficou conhecido por isso. Entretanto (e infelizmente), os trabalhos divulgados têm diversas falhas metodológicas, entre elas a falta um grupo controle efetivo² (um dos trabalhos considera como controle o grupo que foi tratado com azitromicina), critérios claros para inclusão e exclusão de pacientes, desenho do experimento (necessidade de um experimento duplo cego e aleatório³) e, finalmente, a extrapolação dos resultados avaliados para grupos diferentes daqueles testados. Provavelmente em decorrência das falhas apontadas, muitas outras pesquisas não encontraram os benefícios da hidroxicloroquina que esses grupos apresentaram. Parte dessas críticas vale, também, para os artigos que refutam a eficácia da hidroxicloroquina, embora esses últimos, em geral, declarem tais limitações.
Ao buscarmos ativamente por artigos que comprovam a eficácia de um medicamento, ignorando toda a literatura contrária (e vice-versa), geramos um viés que nos distancia do método científico. A partir daí, começamos a escolher “qual ciência” queremos: aquela que concorda com nossa ideologia, com nossos valores. Isso é muito grave - e permite que as decisões passem a ser tomadas por critérios políticos, ao invés de técnicos.
De fevereiro para cá, vimos NSAIDs⁴ entrando e saindo do noticiário, idem para os inibidores do sistema RA(A)S⁵, ambos baseados em meros comentários, sem testes experimentais. A ciência muda e deve mudar: essa é a essência da ciência: ser capaz de se corrigir, de se renovar. Mas essa mudança deve ocorrer a partir de evidências, de resultados provenientes de diferentes e numerosos experimentos. Nem sempre há consenso (em geral NÃO HÁ), mas é a replicabilidade - ou a irreplicabilidade - dos resultados que nos levam adiante. Ao escolher essa ou aquela pesquisa, nos colocamos ao lado dos argumentos que possibilitaram e suportam movimentos como os antivaxxers. Graças a isso, temos o sarampo de volta ao cenário nosológico nacional e internacional.
Qualificar um pesquisador como “de esquerda” ou “de direita” para validar o resultado de sua pesquisa é inconcebível. A ciência não deve ser pautada pelos mesmos motivadores que levam as pessoas a escolherem seus times de futebol, sobretudo com os tragicômicos tons atuais de "ameaça comunista" e "o que a indústria não quer que você saiba". Chegamos ao ponto absurdo de aceitar o conceito de ser “a favor” de um medicamento! Diga-me: você é a favor ou contrário ao uso da insulina? Qual a sua opinião quanto ao uso da tiroxina? Você é a favor ou contra o uso de inibidores de alça no controle da hipertensão? Fora de um contexto extremamente específico e limitado, essas frases são absurdas. Ou deveriam ser.
Temos muitas drogas potenciais contra a COVID-19 (ou contra o vírus). A Nature, nesse artigo, destaca 15 (https://www.nature.com/articles/d41591-020-00019-9) e a cloroquina é uma delas. Sim, é isso que ela é: uma droga em potencial que teve destaque e, à medida que foram investigando mais pormenorizadamente sua ação em pacientes, as evidências cumulativas apontam para a ausência de benefícios e/ou sugerem mais riscos que benefícios. Novas pesquisas ainda estão em curso e, caso haja alguma mudança, a comunidade científica deverá avaliar, sem torcidas.
O mesmo pode ser aplicado às outras, incluindo a ivermectina e à nitazoxanida. No momento, nos EUA, o destaque é do remdesivir. O mesilato de camostat e o mesilato de nafamostat, ambos inibidores da TMPRSS2⁶, ou o tocilizumab⁷, talvez sejam mais promissores do que todas as outras drogas discutidas até agora e muitos profissionais nem sequer sabem de suas existências, porque transformaram medicina e prescrição médica em política.
A prática médica não é política partidária. Ou não deveria ser.
Prescrição médica não é política partidária. Ou não deveria ser.
Ciência não é política partidária. Ou não deveria ser.
As ciências médicas deveriam ser maior que tudo isso: "primum non nocere" (primeiro, não prejudicar).
Mais uma vez: não é sobre estabelecer um consenso. É sobre as bases atuais, perniciosas, que guiam nosso dissenso. Tempos difíceis estão adiante. Há muitas dúvidas sobre imunidade, vacina, proteção... Precisamos urgentemente resgatar a importância da discussão científica respeitosa, baseada em evidências e resultados, para o bem de todos.
PS: Em tempo: vários médicos e médicas estão prescrevendo a hidroxicloroquina/ivermectina (e tantas outras). Por quê? Porque ao contrário do que parece ser o imaginário popular, médicos e médicas são seres humanos. São alvo de pressões, vieses e - acredite - de formações acadêmicas incompletas. Nem todo médico é treinado como cientista, sobretudo no Brasil - e isso não significa que sejam maus profissionais.
A medicina responde à sociedade, direta ou indiretamente, porque médicos e médicas também fazem parte da sociedade, bem como as faculdades onde se formaram. Uma sociedade imediatista exige médicos e médicas imediatistas. Uma sociedade que se automedica muito, lícita e ilicitamente, exige médicos que mediquem muito. As pessoas não querem melhorar, elas querem melhorar "para ontem". Isso será refletido em muita coisa, do índice de cesarianas ao uso de tratamentos sem comprovação: foi essa sociedade que os ensinou que “é preciso fazer algo, e rápido, não importa o quê”. Sob risco de ser processado(a), inclusive...
Notas:
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Existem evidências da eficácia de alguns desses medicamentos em estudos in vitro, ou seja, quando os testamos em laboratório, em “culturas” de células (humanas ou animais).
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De forma muito resumida: quando fazemos pesquisa, separamos os participantes em grupos. O que receberá o medicamento que queremos avaliar a eficácia é chamado de grupo experimental, enquanto o grupo que não receberá o medicamento é chamado de grupo controle.
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De forma resumida: um experimento duplo cego é aquele onde nem o paciente nem o experimentador sabem quem é parte do grupo experimental ou do grupo controle. Os pacientes são sorteados entre os grupos de forma aleatória, por outros membros da equipe da pesquisa, e revelados apenas ao fim do experimento.
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Anti-inflamatórios, como o ibuprofeno.
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Sistema renina angiotensina-aldosterona.
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Uma proteína necessária para a entrada do SARS-CoV-2 nas células, junto com a ECA2.
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Inibidor do receptor da IL-6, uma citocina envolvida na resposta inflamatória.
Autor do texto: Prof. Dr. Aydamari Faria
Biomédico, Mestre em Neuroimunologia, PhD em Fisiologia.
Coordenador da LINUFF
Referências:
Posição da Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobial sobre um dos artigos do Didier Raoult sobre a hidroxicloroquina (em inglês):
https://www.isac.world/news-and-publications/official-isac-statement
Posicionamento do FDA (Food and Drug Administration) americano, que não recomenda o uso da hidroxicloroquina (ou cloroquina) em pacientes fora do contexto hospitalar ou experimental (em inglês): https://www.fda.gov/media/137250/download
Diretrizes para o tratamento farmacológico da COVID-19 da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia:
Manifesto da da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) sobre a pandemia do COVID-19, dirigido aos governantes:
https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/maio/12/manifesto_sobre_a_pandemia.pdf
Posicionamento da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade:
https://www.sbmfc.org.br/noticias/posicionamento-da-acmfc-sc-sobre-a-cloroquina/
Parecer científico da Sociedade Brasileira de Imunologia: